Até 1990 a Justiça criminal brasileira seguia (ferreamente) o modelo clássico (que tem origem na Europa continental): investigação oficial, denúncia do Ministério Público, processo criminal, ampla defesa, contraditório, produção de provas, sentença, duplo grau de jurisdição etc. Não se falava em negociação entre acusação e defesa. Vigorava o princípio da obrigatoriedade da ação penal. Eventual confissão e delação de um corréu eram mera circunstância atenuante da pena. Investigações demoradas, processos morosos, frequentes prescrições, nulidades, impunidade etc. Esse sempre foi nosso cenário de desencanto, caracterizador de uma republiqueta cleptocrata.
Com a lei dos crimes hediondos (9.807/90) foram ampliadas as possibilidades de delação premiada (mas ainda não se falava em um novo paradigma da Justiça criminal). Efetiva mudança de contexto começou com a Lei dos Juizados Criminais (Lei 9.099/95), que previu transação penal para as infrações de menor potencial ofensivo (crimes até dois anos). Isso nunca foi declarado inconstitucional pelo STF. O acordo ou transação no campo criminal tem origem no direito anglo-saxônico (Reino Unido e EUA). Os dois sistemas passaram a se conviver no direito brasileiro.
Diante da falência do poder punitivo estatal (intensa criminalidade + precariedade de meios investigativos + alta impunidade), várias leis posteriores (lei do crime organizado, lei de lavagem de capitais etc.) previram a delação premiada. Mas faltava o procedimento, que veio com a Lei 12.850/2013. Em 2014 esse novo regramento da delação premiada se encontrou com a Operação Lava Jato (escândalo da Petrobras). Nitroglicerina pura! A partir daí a delação explodiu, porque foi rompido o “acordo de cavalheiros” (a omertà) no crime organizado dos poderosos (envolvendo políticos, empreiteiras, empresários, financistas, altos funcionários públicos etc.). Até o momento já foram 22 delações, que estão provocando a maior revolução probatória de todos os tempos. É que na delação o réu confessa, oferece provas e dá as pistas para outras. Mais: se o que foi delatado não for comprovado, não há prêmio.
De onde veio essa “justiça negociada ou colaborativa”? Do sistema anglo-saxônico (particularmente do norte-americano). Hoje, no Brasil, todos os crimes admitem a colaboração premiada (por força da Lei 9.807/99). Temos, então, dois sistemas penais convivendo: o clássico (de origem europeia) e o novo (procedente, sobretudo, dos EUA). Isso significa uma pluralidade de ordenamentos jurídicos, mas cada um tem suas regras específicas.
Há, de qualquer modo, uma grande diferença entre os EUA e o Brasil: lá o sistema vigente é o da plea bargaining, que exige a declaração de culpabilidade do agente – guilty plea. Sinteticamente: guilty or not guilty (culpado ou inocente). Se o réu se declara culpado, evita-se o processo criminal. Não há produção de provas, contraditório etc. Discute-se a pena e inicia-se sua execução. No Brasil é diferente: o réu confessa, delata e é preciso instaurar o processo criminal para a produção das provas, com todas as garantias constitucionais. Tudo que é delatado precisa ser provado (nisso reside a regra de corroboração). É o que está ocorrendo na Operação Lava Jato. O juiz não pode condenar ninguém com base exclusivamente na delação. Delação não provada não derruba a presunção de inocência. Não havendo provas o juiz tem que absolver.
O sistema brasileiro é mais custoso, mas é muito mais cauteloso que o norte-americano (porque aqui se exige a prova da culpabilidade do réu). A soma da delação premiada + o rompimento da omertà (silêncio da máfia) + a produção rápida das provas + mais a atuação de Sérgio Moro está fazendo com que a Justiça ande muito mais velozmente. Pela primeira vez na nossa história todos esses fatores estão se combinando.
A Justiça, com isso, está desmoronando a organização criminosa mais poderosa do País. Trata-se de um novo paradigma. Mas toda cautela é pouca. Se as delações forem “forçadas” (sob ameaça, sob constrangimento), tudo será anulado. A anulação de toda Operação Lava Jato (tal como ocorreu com Castelo de Areia e Satiagraha) seria, hoje, a maior frustração coletiva do povo brasileiro (que deseja ardentemente a defenestração de todos os “bodes expiatórios” do momento: políticos, empreiteiras, operadores financeiros, altos funcionários da Petrobras etc).