Com as mãos trêmulas, cobertor nos ombros e o olhar perdido, centenas de pessoas se aglomeram num quadrilátero de ruas estreitas no centro de São Paulo na busca incessante por uma pedra de crack. De uma farda azul marinho, cassetete e revólver na cintura, o guarda municipal Marcos de Moraes, de 51 anos, observa a multidão na cracolândia durante sua patrulha.
À distância, ele analisa o comportamento dos usuários de drogas que frequentam o local. Moraes se aproxima de alguns e oferece apoio para aqueles que mais o comovem. “Você aceita ajuda? Eu não estou brincando. Se você confiar em mim, eu posso te tirar das ruas”, diz o guarda com firmeza na voz e olhar acolhedor, enquanto segura a mão de seu interlocutor.
Em oito anos na Guarda Civil Metropolitana (GCM), Moraes já encaminhou para abrigos, levou de volta para os braços da família e até para morar dentro de sua própria casa cerca de 50 usuários de crack e moradores de rua.
“Levo para casa mesmo. Sei que é um número pequeno, mas não me importo com quantidade, e sim com a qualidade. Quando pego um caso, vou até o fim”, disse em entrevista à BBC Brasil.
O Facebook é uma das principais ferramentas que Moraes usa para encontrar as famílias dos moradores de rua.
Mas os compartilhamentos na rede também o levaram a conhecer sua mulher, Karyne Santana Xavier de Moraes, 29. “Eu sempre compartilhava as postagens dele e a gente começou a conversar. Nos encontramos, namoramos dois anos e casamos”, contou ela.
Hoje, Moraes vive em uma casa alugada em Mogi das Cruzes (Grande São Paulo) com a mulher Karyne e o pedreiro Geraldo Martins, de 63 anos, que foi resgatado quando morava nas ruas de São Bernardo do Campo, também na Grande SP.
O guarda levou o desconhecido para dentro de sua casa em fevereiro depois de ver um alerta no Facebook para o caso dele – o senhor que saíra de Pernambuco em busca de um emprego e estava morando na rua.
“Ele trabalha em São Paulo e a esposa dele fica sozinha. Não sei como ele teve coragem de me trazer. Ele confia demais em mim. É amizade demais nós, parece que ele é meu filho”, disse Geraldo com lágrima nos olhos. Até mesmo os dois gatos e o cão de estimação do guarda civil foram adotados da rua.
Leia o depoimento de Marcos de Moraes à BBC Brasil:
Eu nasci em Mogi das Cruzes (Grande SP), onde moro até hoje. Tive uma infância muito boa, embora eu tenha perdido meu pai com seis anos. Um pai faz falta, mas consegui me adaptar muito bem com meu padrastro.
Todo menino quer ser herói e na minha infância os meninos sonhavam em ser jogador de futebol. Eu também, mas eu jogava muito mal. Então, eu me direcionei para ser policial e sempre queria ser o mocinho nas brincadeiras de polícia e bandido.
Vendi ferro-velho e, em 1990, comecei a vender cachorro-quente na porta da Universidade Mogi das Cruzes. Foi quando comecei a me aproximar de moradores de rua.
No fim da noite, sempre chegavam um ou dois pedindo um lanche e, claro, eu dava. E aproveitava para perguntar o motivo de estarem na rua. Cada um tinha uma história e ali começou a despertar a minha atenção para o lado dessas pessoas excluídas da sociedade.
Alguns diziam até que o prefeito os transportavam para uma área afastada e eles só chegavam novamente à noite no centro da cidade.
Depois de 12 anos vendendo lanches, passei a vender cerveja e, em 2008, eu fiz concurso e entrei na Guarda Civil Metropolitana (GCM). Foi lá que me realizei profissionalmente.
25 anos na rua
Na GCM, tive a oportunidade de me aproximar das pessoas em situação de rua para tentar ajudá-las da forma que eu pudesse.
Em oito anos na GCM, eu já encaminhei cerca de 50 moradores de rua para clínicas de reabilitação ou de volta para suas famílias. Até hoje eu tenho contato com alguns deles e até ligo para saber como estão.
Eu sempre converso com a família do senhor Claudiocir, que era viciado em crack e morou 25 anos na rua. Quando o conheci, perguntei se ele deixaria as drogas se eu encontrasse sua família, que morava em Poções, na Bahia.
Ele, que morava sob uma tábua, disse que sim e eu fui atrás. Pedi ajuda na rádio da cidade de Poções até encontrar a mãe dele. Vizinhos que ouviram o apelo e até o próprio radialista foram até a casa dela.
Disseram que a senhora até deixou o café no fogo e deu pulos de alegria quando soube notícias do filho.
O reencontro foi maravilhoso. A TV Record se interessou pelo caso, levou o rapaz para uma clínica de reabilitação e depois pagou a passagem de volta.
Pedreiro de Olinda
Alguém encontrou o seu Geraldo na rodoviária de São Bernardo do Campo, na Grande SP, e publicaram a foto dele no Facebook dizendo que ele quer voltar para casa, mas ninguém o ajudava.
Eu e minha esposa fomos lá para ajudá-lo. Fizemos uma selfie na frente com uma brincadeira para ver o que faria. Ele brincou com a gente falando que estávamos fazendo uma foto dele. Em seguida, disse que não tinha problema.
Perguntei se ele queria mudar de vida porque eu estava disposto a ajudá-lo. Ele falou que queria porque aquilo não era vida.
Ele veio de Pernambuco com a promessa de um trabalho, mas não conseguiu e foi para a rua. Isso acontece com a maior parte das pessoas que moram na rua.
O Geraldo tinha um pequeno problema com álcool porque hoje é praticamente impossível alguém estar na rua e não ser usuário, no mínimo, de bebida alcoólica por conta do frio.
Eu então o chamei para ir embora comigo. Perguntei se ele não era pedreiro e disse que também tinha um serviço na minha casa que ele poderia fazer e ainda encontraria mais trabalho para ele.
Ele nem parou para pensar na resposta. Se despediu dos amigos, entrou no meu carro e a gente foi embora.
Ele dorme em um cômodo no fundo da minha casa e me ajuda em uma obra. O seu Geraldo já faz parte da minha família. A comida que ele almoça é a mesma que a nossa, toma café da manhã com a gente, passeia, viaja. Ele está bem feliz.
O Geraldo tem 52 anos e é muito respeitoso. Eu saio de casa e deixo ele sozinho com a minha mulher, mas nunca tive nenhum tipo de problema.
Ele até nos mostrou na internet a casa onde ele mora em Pernambuco, onde os filhos e a mulher estão. A intenção dele agora é guardar um dinheiro através do trabalho e visitar a família em outubro.
Mas ele não quer morar lá. Ele quer passear e voltar para São Paulo. Ele diz que aqui é o lugar onde ele se sente feliz. Ele colocou uma arcada dentária nova, comprou roupas. O único mal dele hoje é o cigarro, mas ele prometeu que vai parar.
‘Está com dó? Leva para casa’
Eu já ouvi muita gente dizer: “Está com dó, leva para casa”. Esses são os primeiros a apontar, a dizer que eles estão ali [na rua] porque querem.
Não é assim. Os moradores de rua merecem no mínimo serem ouvidos, merecem atenção.
Isso é antigo. Tem uma passagem na bíblia com o homem caído que é ignorado pelas pessoas que poderiam ajudá-lo. Mas um passa e vem para ajudá-lo. Esse sou eu. Se tiver no meu alcance, vou ajudar na hora.
E tem muita gente assim. Tem gente que não aguenta só ver, mas também ajuda. Se eu puder dividir um prato de comida eu divido.
Com o seu Geraldo não foi diferente. Ele se propôs a mudar de vida e está comigo até hoje. Levei para casa mesmo.
Fim da vida em casa
Eu encontrei o Felipe Furlán, de 23 anos, na porta de um mercado na avenida Ipiranga, no centro de São Paulo. Me aproximei e perguntei se ele queria voltar para casa.
Ele respondeu que sim e que sua família era de Piracicaba (a 160 km da capital). Lancei uma campanha no Facebook e os compartilhamentos chegaram até o irmão dele, que viu e me procurou. A família já tinha até feito um boletim de ocorrência por desaparecimento.
No dia do reencontro, paguei um banho para o Felipe numa pensão e fui na [rua] 25 [de Março] e comprar umas roupas para ele. Quando a mãe dele chegou, até passou direto porque não o reconheceu porque ela tinha como base as fotos que eu havia passado, dele com roupas sujas, barbudo e cabeludo.
Quando eles se encontraram, foi só alegria. Essa é a melhor parte da história. Nada pagar ver um filho voltar para casa nos braços da mãe, do irmão e de um primo.
O Felipe voltou para casa com eles e, passados dois anos, infelizmente ele sofreu um acidente veio a falecer. Mas a minha parte nessa história de vida é que ele passou os dois últimos anos de vida ao lado da família. E isso não tem preço.”
O dilema
Em 2008, me aproximei de um senhor na praça Buenos Aires, em Higienópolis, no centro de São Paulo. Era o senhor Antônio, que falou: “A coisa que eu mais queria era rever meu filho, que hoje deve ter 25 anos. Eu não o vejo desde os 3 anos, quando briguei com minha mulher e saí de casa.”
Achei o nome do filho dele numa lista de concurso público e descobri que ele trabalhava como carcereiro. Consegui o telefone dele em um boletim de ocorrência e liguei empolgado para dizer que tinha achado seu pai.
Ele atendeu o telefone e respondeu, exaltado, que seu pai estava em casa e que eu estava louco. Pedi desculpas e disse que me enganei.
Eu tinha certeza que aquele era o filho do Antônio, mas preferi tomar essa decisão para não estragar a família. A mãe dele deve ter encontrado outro homem e disse que era o pai dele, quando ainda tinha 3 anos. E nessa área, eu não posso entrar.
Voltei e disse para o Antônio que não encontrei o filho dele.
Ampliação
Eu dependo da ajuda de muita gente para fazer esse trabalho social porque ninguém faz nada sozinho. E eu preciso de muita gente para me ajudar. Não financeiramente. Quando há gastos, são meus.
A primeira coisa que a pessoa precisa é se alimentar, mas isso é o de menos. Se a pessoa precisa de uma passagem, eu que pago, comprar roupa, eu compro. O que tiver que fazer eu faço com o maior prazer, nunca me faltou nada.
Algumas pessoas já quiseram me ajudar com passagens. É sempre bem-vindo, mas eu quero profissionalizar isso, talvez criando uma ONG.
O meu comandante na GCM, Gilson de Meneses, me dá todo o apoio necessário dentro da corporação. Se eu precisar de carro, tenho à disposição. Isso é muito importante.
Quando eu preciso fazer uma busca, o computador da guarda está à minha disposição também. Mas eu também faço isso em casa como uma extensão desse trabalho social. Esse é o meu dom.