Uma unidade do Hospital São Camilo de São Paulo se recusou a colocar um dispositivo intrauterino (DIU) em uma paciente por seguir diretrizes “de uma instituição católica”. O caso aconteceu na manhã da segunda-feira (22) com a produtora de conteúdo Leonor Macedo, de 41 anos.
Ela procurou a unidade da Pompeia do hospital, na Zona Oeste da capital, para implantar um DIU, quando foi informada pela médica que eles não fazem o procedimento por se tratar de uma instituição religiosa. “Fiquei em choque, imagina, nunca tinha passado pela minha cabeça que em 2024 isso poderia acontecer e que as coisas ainda eram tão atrasadas assim”, afirmou ao g1.
Leonor informou que foi novamente procurada pelo hospital, que disse que não colocam DIU nem fazem vasectomia. Também teriam dito que o DIU, é “quase um aborto de um ser vivo”, e que o procedimento só é feito em casos graves, mas não como método contraceptivo.
“Para alguns lugares as coisas ainda são muito ultrapassadas e não tem outra solução a não ser a gravidez. Você não pode adotar um método contraceptivo que é totalmente legal, não pode fazer um aborto caso engravide, então você perde o direito sobre o seu corpo, você está sempre sendo regulado e ditado por outras coisas, por coisas maiores, como instituições religiosas, mesmo não sendo religioso”, afirma Leonor.
O dispositivo intrauterino (DIU) é um dos métodos contraceptivos disponíveis de graça no Brasil pelo Sistema Único de Saúde (SUS), com eficácia superior a 99%.
Em nota, o hospital informou ao g1 que “por ser uma instituição confessional católica, tem como diretriz não realizar procedimentos contraceptivos, em homens ou mulheres. Tais procedimentos são realizados apenas em casos que envolvam riscos à manutenção da vida”.
“Os pacientes que procuram pela Rede de Hospitais São Camilo – SP, e que não apresentam riscos à saúde, são orientados a buscar na rede referenciada do seu plano de saúde hospitais que tenham esse procedimento contratualizado”, completou.
O Hospital São Camilo foi inaugurado em 1960 por religiosos camilianos que haviam criado, em 1935, a Policlínica São Camilo.
Vale ressaltar que o Brasil é um país laico e, desde janeiro de 1890, é proibida por lei a intervenção da autoridade federal e dos estados em matéria religiosa, consagrando a plena liberdade de cultos.
Mas afinal, uma rede hospitalar pode recusar esse tipo de atendimento por viés religioso?
De acordo com a advogada Juliana Valente, especialista em violência de gênero, segundo o artigo 199 da Constituição Federal, a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, e essas instituições funcionam de forma complementar ao SUS.
Ou seja, as instituições privadas são uma extensão do atendimento público aos pacientes.
Segundo a Lei Orgânica de Saúde, quando existir uma insuficiência dos serviços públicos, ele pode ser disponibilizado pela iniciativa privada.
“Em verdade, entendendo que o estado é laico e a instituição privada de saúde deverá ser complementar ao SUS, seguindo a Constituição, essa determinação é um absurdo”, afirma a advogada.
Ainda de acordo com a lei, os serviços públicos e privados de saúde, sejam ele contratados ou conveniados, dentre seus princípios, devem:
- Obedecer à universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;
- e oferecer igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie.
Pelo entendimento de Valente, ao se recusar a oferecer um serviço, a instituição pode estar ferindo a lei.
“Se eles são obrigados a complementar o SUS, e o Estado é laico, eles não podem recusar com fundamentação religiosa”, completa.
Mas as interpretações do caso não são unânimes. Conforme o entendimento do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), os hospitais particulares não têm a obrigatoriedade de realizar procedimentos contraceptivos como a implantação de DIU.
“A realização deste procedimento depende do protocolo de cada instituição. Além disso, este é um procedimento que pode ser realizado em consultório médico, de modo que nem todos os planos de saúde cobrem sua inserção e internação em hospitais.”
Juliana Hasse, presidente da Comissão de Direito Médico da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), também entende que o hospital pode se recusar a fazer o procedimento.
“Essa prática é comumente baseada em princípios éticos e morais associados à religião da instituição. É importante notar que, mesmo em locais onde hospitais religiosos podem se recusar a realizar procedimentos contraceptivos, geralmente existem outras opções de saúde disponíveis onde esses serviços podem ser obtidos.”
“Ainda sobre tal tema, em situações que não envolvem risco imediato à vida da paciente, como em emergências, um hospital privado tem a liberdade de aderir a princípios religiosos. Assim, no contexto de tais crenças, a contracepção pode ser vista como contrária à preservação da vida”, completa.
Do ponto de vista do direito do consumidor, o Procon informou que, “sob o aspecto do Código de Defesa do Consumidor, o fornecedor não é obrigado a prestar todo tipo de serviço, a menos que ele integre um plano que ofereça este atendimento para seus conveniados. E isto precisa estar claramente explicado no contrato entre a operadora e o usuário”.