Tranquila, pacata e calma como a água do São Francisco, Traipu, cidadezinha de 30 mil habitantes no sertão de Alagoas, a 180 quilômetros de Maceió, parece um sossego só. Parece.
Um promotor é escoltado por soldados da Força Nacional, um mandado de busca e apreensão na papelada da prefeitura e na casa de empregados do prefeito. Até um cofre é arrancado da parede a pancadas.
A cidade, perplexa, assistiu a quatro operações policiais nos últimos meses. “Só não sei contar amiúde ao senhor. Agora sei que é moda os mal feitos do prefeito”, diz o aposentado João dos Santos.
“Ele saiu da cidade porque não fez coisa boa”, afirma o agricultor Florisval Mota.
“O que se fez em Traipu foi um dilapidação geral do patrimônio público, total desrespeito à lei e à ordem”, explica o procurador geral de Justiça Eduardo Tavares.
O homem acusado de desviar o dinheiro do município é o prefeito Marcos Santos, que exerce o mandato pela terceira vez. A última campanha, ele fez de dentro do presídio, acusado de corrupção.
“Ele passou dez meses na prisão, se não me falha a memória, foi solto dez dias antes do pleito eleitoral e foi reeleito”, conta Luiz Vasconcelos, do Grupo de Combate ao Crime Organizado.
Uma vitória acachapante. “O povo dele o ama de coração, nunca vai deixar de votar nele”, afirma uma eleitora.
Ele construiu fama de político imbatível, a ponto de ser chamado de ‘Barão do Rio São Francisco’. A fuga do prefeito é um daqueles episódios que só fazem aumentar a fama do Barão do São Francisco. Pressionado por ações na Justiça, por um mandado de prisão, por uma operação do Ministério Público que bloqueou as principais saídas da cidade, ele conseguiu escapulir nas barbas da polícia. Dizem que pelo rio, de pijama, com a mulher e os principais assessores, acelerando a lancha sem que ninguém conseguisse alcançá-lo.
Na casa dele, em Traipu, nem uma palavra. Uma pessoa afirma que não sabe onde o prefeito está. “E também se soubesse não dizia”, completa.
O silêncio, para a professora municipal Cristina Maria, tem suas razões. “A história é: desobedeceu Marcos Santos, apanha na cara”, lembra a professora.
Aos amigos, tudo. A operação do Ministério Público encontrou cartas de doação de imóveis a correligionários com o dinheiro da prefeitura. Na casa de um empregado do prefeito, o promotor encontrou pilhas e pilhas de documentos oficiais.
“A folha de pagamento do município, ou parte dela, é confeccionada nesta casa. Mas deveria ser na prefeitura. No departamento de pessoal. São pessoas que são incluídas na folha de pagamento ao bel prazer do prefeito. Ele realiza os pedidos que o prefeito determina. Além de receber abaixo do salário mínimo, exemplo: R$ 200, R$ 300, ficariam com R$ 100 e R$ 200 são repartidos com terceiros, que seriam indicados pelo prefeito. Nós temos o resumo de toda a folha do município. O que é gasto nas secretarias, o que é gasto na folha da garagem, com pessoal que não trabalha, inclusive, está bem claro: ‘não trabalha’”, explicou o promotor Luiz Tenório.
O gasto mensal de R$ 11.920 era distribuído a pessoas como a faxineira Soledade dos Anjos, contratada de boca, sem carteira assinada, para receber uma ninharia. “Sem trabalhar, R$ 60 por mês”, contou a faxineira.
Para ganhar um pouco mais, Soledade trabalha de faxineira em uma escola municipal. “Hoje o salário é de R$ 100 por mês. Não é nem um salário mínimo”, diz a faxineira.
Além das contratações ilegais, há suspeita de fraude em licitações. De acordo com a promotoria, empresas mudaram de nome e endereço para enganar a fiscalização. Uma delas, especializada em vender alimentos, bebidas e fumo, fechou um contrato de quase R$ 2,7 milhões para alugar máquinas pesadas e carros pipa. Outra, com capital social de apenas R$ 80 mil, recebeu R$ 116 mil para construir uma ponte.
O Fantástico visitou a sede da empresa no município do Coruripe. Uma senhora alugou a sala para a construtora.
Fantástico: Eles têm máquinas, funcionários, alguma coisa?
Senhora: Até agora, não tem, não.
Funcionários, gente, equipamentos, nada?
Tem só o telefone.
A equipe de reportagem procurou a responsável pela empresa. “Eu sei que ela fez uma viagem, mas não sei aonde ela foi, não nem quando volta”, disse uma mulher.
Uma testemunha-chave na denúncia contra o prefeito está sendo protegida pelo Ministério Público. Ela hoje está fora de Alagoas e teria sido convencida pelo secretário Municipal de Turismo, José Valter Matos, a abrir uma empresa de shows musicais. A testemunha foi levada ao banco para sacar o dinheiro de um serviço prestado.
Fantástico: Foi pago à sua empresa a título de quê?
Testemunha: De festas, contrato de bandas. Eu tinha que ir, eu não entendi, mas eu tinha que ir. Quando cheguei lá era para receber esse dinheiro.
Quanto foi sacado?
R$ 127 mil.
Você que sacou o dinheiro?
Eu, ele (o secretário de Turismo) e mais algumas pessoas.
Quem eram essas pessoas?
O filho do prefeito e mais um monte de gente que foi sacar esse dinheiro.
A testemunha contou tudo à Polícia Federal. Dois dias após o depoimento, o secretário de Turismo foi assassinado. Câmeras de segurança identificaram o acusado pelo assassinato. É um ex-empregado do prefeito Marcos Santos, Erivan dos Santos, que está foragido.
O Ministério Público vai investigar uma possível ligação deste e de outros 28 assassinatos com a rede de desvio de dinheiro público. Na casa de um primo do prefeito, a polícia encontrou 19 armas entre pistolas e espingardas. O rombo de 17 contratos fechados com quatro empresas já foi computado.
“Um montante de R$ 4,6 milhões, apenas nesses 17 contratos. Com compras absurdas: 40 mil de papel higiênico”, afirmou o promotor Luíz Tenório.
Se a compra foi feita, nunca chegou a uma escola pública de Traipu. “A gente arranca a folha do caderno e dá a criança para limpar o bumbum”, disse a professora Maria Salete Pereira.
Objeto de uma ação também do Ministério Público Federal por suspeita de desvio de dinheiro da merenda escolar, a prefeitura de Traipu não entrega um grão de comida sequer à escolinha rural da Vila Santo Antônio.
Merendeira Maria das Graças Ramos: Então a merenda é assim aqui, porque não tem lugar de cozinhar. Olhe, a pia não tem como lavar as coisas.
Fantástico: Não tem torneira?
Não tem torneira, não tem nada!
Mas a senhora tem o que dar pra eles?
Esse armário, quer dizer que é para guardar alguma coisa. Só que não tem nada!
O prefeito, a mulher dele, e outros três correligionários estão foragidos e são procurados pela Polícia Federal.
“Eu não tenho conhecimento do paradeiro dele, mas ainda que eu tivesse conhecimento do paradeiro dele, a defesa acha por bem não se manifestar”, disse o advogado da defesa, Felipe Lins.
A prefeitura foi assumida pela vice-prefeita, Juliane Tavares Machado dos Santos, casada com um dos filhos de Marcos Santos.
Fantástico: A senhora tem alguma participação nos crimes que estão sendo atribuídos ao prefeito de desvio de dinheiro público, de contratação irregular de funcionários e vários outros crimes?
Prefeita: Não. Não tenho nenhuma participação, não.
A senhora é nora do prefeito. A senhora não sabia de nada disso?
Não. A minha relação com ele era pessoal, como nora. Agora, como profissional, ele prefeito e eu vice-prefeita não tenho conhecimento, não.
São três ações cíveis e duas ações penais propostas pelo Ministério Público Federal. O Ministério Público Estadual vai propor outras duas ações, uma penal e uma cível, com a denúncia de 11 crimes diferentes contra o prefeito Marcos Santos.
“O prefeito pode bradar, o prefeito pode gritar, o prefeito pode dizer mil vezes que é o barão do rio, porque, na verdade, ele vai ser o barão do presídio”, disse o procurador geral de Justiça, Eduardo Tavares.