Esta não é uma história com moral. Apenas uma história, entre tantas outras que conto todos os dias. Sim, porque acredito que – na essência – o jornalismo é a prática de contar histórias, às vezes com finais felizes, a maioria delas nem tanto. A de hoje está relacionada a mais um crime na periferia de Maceió, no cobiçado e esquecido Complexo Benedito Bentes. Cobiçado pelos políticos, e seu potencial curral eleitoral – e esquecido por estes mesmos políticos, quando chegam ao poder e se tornam gestores.

Fim de tarde, uma avenida de paralelepípedos, um terreno baldio, provavelmente utilizado como campo de futebol, uma Assembleia de Deus e um corpo na calçada. Apenas mais um para as estatísticas “controladas” do Estado. Mais um jovem de 20 anos morto a tiros, efetuados por Deus sabe quem. Nesta tarde, nem sua assembleia quis se manifestar.

Uma das coisas mais chocantes para quem cobre o noticiário policial nesta cidade é a semelhança entre os ‘locais de crime’. Uma guarnição da Polícia Militar, quase sempre responsável por ‘guardar’ o corpo, em algumas situações agentes da Polícia Civil e sempre, repito sempre, dezenas de curiosos. A maioria esmagadora de crianças. Hoje não foi diferente.

Enquanto ‘levantava’ as informações sobre o crime junto às fontes oficiais, minhas perguntas eram acompanhadas com atenção pela plateia. Sim, porque há até o ápice do espetáculo, quando as equipes de televisão se aproximam e o corpo é descoberto, as pessoas chegam a se acotovelar para ver mais um corpo sem vida, mais uma família desfalcada, outro sonho interrompido.

Enquanto escrevia a matéria, passei da condição de repórter à entrevistada. Meus entrevistadores: três crianças, de aproximadamente dez anos, que sentindo a minha aquiescência decidiram me fazer toda sorte de questionamentos. Você estava quando a polícia encontrou o corpo das duas irmãs? Você trabalha à noite? Quando vai passar na televisão? Qual é o canal?

Ao responder as perguntas, elas sucediam em maior velocidade e complexidade: É verdade que quando a gente entra no mar quem morreu lá vem puxar o nosso pé? Sabia que você parece com a minha mãe? Ela é gorda como você. Tá, confesso que essa doeu no meu combalido ego.

Mas, momentos depois, surge a primeira confissão. “Hoje eu vou ter pesadelo”, me disse o garoto menor, que em poucos segundos disse morar no Alto da Alegria e estudar no Caic. No rosto, algumas cicatrizes na pele, provavelmente de alguma doença decorrente da subnutrição, más condições de higiene ou negligência. Por que não vai dormir, questionei? “Porque eu vi o corpo, quando cheguei ele ainda estava respirando, mas morreu depois”, contou-me o garoto de olhos brilhantes, que esqueci de perguntar o nome. Então por que vem? Impôs-se minha lógica. E ele: “porque sou curioso.”

No final da nossa conversa, quando finalmente o convenci de que minha matéria não seria veiculada na TV e sim na internet, ele me fez o último pedido. “Tira uma foto da gente?” Eu tirei e mostrei a ele. Sabem o que ele fez? Abraçou-me rapidamente e me deu um beijo no rosto. Por uma foto. Eu ganhei um beijo no rosto de um menino que não sabia se ia dormir porque tinha visto um jovem apenas dez anos mais velho que ele morrer. E mesmo diante da tragédia, da violência brutal, da falta de oportunidade e perspectiva, distribuiu afeição para uma estranha.

Talvez eu tenha encontrado Deus e, no caso de ele estar me ouvindo, gostaria de pedir que meu anjo dormisse bem essa noite.

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