A herança da escravidão

Nenhuma instituição se encravou mais profundamente na vida
brasileira, com efeitos perniciosos, do que a escravidão. A abolição da escravatura, em 13 de maio de 1888, não significou o fim das comunidades que reuniam os negros fugidos das senzalas. Pelo contrário. Libertada num país que não era o deles e ainda muito preconceituoso, boa parte dos ex-escravos se amontoou em quilombos – alguns organizados desde o período de opressão, outros formados depois da abolição.

Diversas comunidades descendentes dos quilombos daquela época, batizadas de quilombolas (do cruzamento de canhambora, "escravo fugitivo" em tupi-guarani, com kilombo, "cabana", em quimbundo, língua africana), hoje lutam com fazendeiros e mineradores não mais pela liberdade, mas por terras onde viver.

Se fossem reunidas todas as áreas que se auto-intitulam quilombolas, elas formariam um território do tamanho da Itália ou do estado de São Paulo – são mais de 30 milhões de hectares habitados por uma população estimada em 2,5 milhões de pessoas. Elas estão espalhadas por mais de 800 municípios em todos os estados, à exceção do Acre e de Roraima.

Em Alagoas, há 25 comunidades quilombolas. Localizadas muitas vezes em áreas de difícil acesso, algumas delas permanecem afastadas dos grandes centros e não conseguem se desenvolver de maneira plena. A comunidade Filu, localizada no município de Santana do Mundaú (AL), é um exemplo desse isolamento social. A maior parte de sua população nunca andou de carro ou teve acesso a serviços de telefonia, por exemplo. A carência de recursos impede que as pessoas se beneficiem de bens típicos de centros urbanos. Muitas pessoas ainda desconhecem os direitos específicos dos quilombolas. Muitos não têm consciência de sua origem e de seus direitos, às vezes até desconhecem que são quilombolas.

A luta, legítima e constitucional, das comunidades quilombolas de todo Brasil para ter reconhecido, demarcado e titulado o seu próprio território, tem me sensibilizado. O protagonismo corajoso e perseverante das comunidades quilombolas levou à elaboração de uma base legal que legitima seus direitos e à implementação de políticas públicas afirmativas que, mesmo insuficientes, são um passo indispensável para que lhes seja feita justiça.

O combate a essa face da desigualdade étnico-racial no Brasil é uma das minhas prioridades no Parlamento e devemos, logo, retomar uma agenda legislativa em prol da igualdade racial. Tenho defendido o projeto de lei que institui o Estatuto da Promoção da Igualdade Racial, apresentado pelo senador Paulo Paim (PT/RS).

Infelizmente, o preconceito existe e faz mal para todas as pessoas, não somente aos negros, mas para toda a sociedade. Além de reprovável sob qualquer ponto de vista, dificulta a superação de graves distorções sociais. Relatório lançado em 2005, pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, mostra que 64% da população de baixa renda no Brasil é composta por pessoas negras, aproximadamente 25 milhões de indivíduos. Podemos ver que a pobreza no Brasil tem cor. Quase 80% de jovens assassinados, entre 16 e 24 anos, são negros. E uma mulher negra ganha quatro vezes menos do que um homem branco.

Nós todos temos uma dívida social e histórica para com as populações negras. Como neste dia 20 de novembro é celebrado o Dia da Consciência Negra — que tem um significado especial porque se reverencia Zumbi que empresta o nome ao aeroporto de Maceió — vamos aproveitar o momento para debater questões como a dos quilombolas. Afinal, os anos foram passando, mas o sonho de liberdade de Zumbi permanece.

*Renan Calheiros é Presidente do Senado Federal

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