Minha filha voltando comigo da escola me surpreende: -Pai, nessa casa a gente toda vez toca a campainha e sai correndo! Engasguei-me com o chiclete e quase batia no carro da frente ao ouvir aquilo. Não, aquilo não me era uma coisa estranha e inédita, muito pelo contrário -foi algo tão corriqueiro para mim...
Minha filha voltando comigo da escola me surpreende:
-Pai, nessa casa a gente toda vez toca a campainha e sai correndo!
Engasguei-me com o chiclete e quase batia no carro da frente ao ouvir aquilo. Não, aquilo não me era uma coisa estranha e inédita, muito pelo contrário -foi algo tão corriqueiro para mim e toda minha geração quanto é ter hoje uma conta no Instagram. Porém, minha surpresa e estupefação se deram por outros motivos.
Primeiro que não sabia que minha filha andava pela rua sozinha…
-Sozinha não, né pai. De vez em quando eu e meus amigos vamos almoçar aqui perto da escola e quando a gente passa por essa casa, toca a campainha. O resto você já sabe…
Segundo porque não imaginava que esse tipo de traquinagem, digamos, pouco tecnológica, ainda despertava interesse dessa geração tão eletrônica, conectada e sedentária. No mesmo instante lembrei-me de quando vivíamos zanzando pelas redondezas, tocando não uma, mas dezenas de cigarras com o objetivo de apenas encher o saco dos moradores da casa. Aquilo à época parecia uma transgressão bem própria da insensatez e leve crueldade de toda uma geração, mas que relembrada hoje após a confissão desassombrada de minha filha, soa apenas como uma grande bobagem coletiva.
Então tentei dar-lhe uma certa lição de moral que de tão pouco sincera, soou artificial e pouco convincente. Ela desdenhou e disse “que besteira, pai”, e voltou a atenção ao seu celular. Eu, porém, fiquei sorrindo por dentro, lembrando-me de outras traquinagens que fazíamos, quando não haviam smartphones, computadores, netflix, videogames e antenas com 200 canais para nos entreter. Fazíamos bullying sem saber que tinha esse nome, tínhamos paqueras e não “crushs” e seguíamos os passos de alguém que nos interessava sem saber que estávamos “stalkeando”…
Daí a inquietação juvenil nos fazia passar trote para desconhecidos, quando não havia identificadores de chamada, pedir um copo d’Água em casas na rua -quando não havia garrafão de água mineral e sim filtros de barro- “maiar” nos ônibus, botar cadeados em portões alheios, botar bombinhas em caixas de correios, roubar frutas nos quintais das redondezas e finalmente, tocar a campainha e sair correndo rindo feito bobos. Ah, como além de bobos éramos também felizes.
Após essa pequena viagem no tempo enquanto voltava para casa, perguntei mais uma vez à minha filha:
-Então me conte, minha filha. Como é essa história de tocar a campainha e sair correndo?
Ela então prontamente põe o celular na frente do meu rosto , abre um vídeo e me mostra:
-Veja como é, já que você está tão curioso!
Realmente hoje em dia tudo é diferente; ela me mostra um vídeo publicado no Instagram, com todos correndo sorrindo pela calçada e a dona da casa furiosa abrindo o portão, enquanto eu não tenho um mísero registro das minhas traquinagens juvenis -apenas as inúmeras cicatrizes na minha pele….