Certo dia, assisti uma reportagem na TV sobre um casal que, após ter sido demitido dos seus respectivos empregos, ambos viraram motoristas de aplicativo, com ganhos acima dos seus salários anteriores. Acontece que o casal tinha apenas um carro, obrigando marido e mulher a se reversarem por turno na utilização do automóvel . Então a reportagem...
Certo dia, assisti uma reportagem na TV sobre um casal que, após ter sido demitido dos seus respectivos empregos, ambos viraram motoristas de aplicativo, com ganhos acima dos seus salários anteriores. Acontece que o casal tinha apenas um carro, obrigando marido e mulher a se reversarem por turno na utilização do automóvel .
Então a reportagem mostrava a luta diária dos dois, onde a esposa e mãe trabalhava ininterruptamente das 7:00 às 19:00 e o marido das 19:00 às 7:00 —assim mesmo, como o funcionamento de uma engrenagem precisa e azeitada.
A rotina era bem massacrante, pois apesar de se falarem constantemente por mensagens e eventuais ligações sobre as demandas domésticas e pessoais do dia a dia, só se viam de verdade mesmo durante poucos minutos, na rápida troca de turno quando se dava a passagem do pobre e exausto carro, que rodava 24 horas por dia nas mãos daqueles dois intrépidos batalhadores.
Era ela descendo do carro morta com farofa e ele dando uma bitoquinha de “oi e tchau”. Aproveitavam o breve momento para uma rápida troca de instruções e observações, talvez do tipo: “olha, aquele barulho embaixo do carro está aumentando cada vez mais e aquela luz de alerta permanece acesa”…
Fiquei impressionado e consternado com a batalha diária daquele homem e daquela mulher , em que a união por um justo e necessário propósito, acabava por afastá-los impiedosamente como casal.
Então, inevitavelmente lembrei-me de um clássico filme dos anos 80 chamado O Feitiço de Áquila, com o talentoso Rutger Hauer e a belíssima Michelle Pfeiffer, que viviam um casal na Idade Média e que, por terem despertado o ciúme do maléfico bispo de Áquila , recebeu um duro castigo na forma de uma maldição, que transformava o homem num lobo durante a noite e a bela mulher numa águia durante o dia, impedindo assim de entregarem-se um ao outro. Apesar de passarem o dia juntos, eram separados impiedosamente pela condição, digamos, morfológica oriunda da tal maldição.
Umas das cenas mais belas do filme acontecem quando ambos encaram-se no raiar e por do sol diário, sendo ele meio homem, meio bicho e ela, meio mulher e meio ave de rapina. Os olhares com vestígios humanos de dor, sofrimento e paixão, são de cortar o coração.
Já o nosso casal real da reportagem, também tem seus breves momentos onde se encontram mezzo gente , mezzo bicho; porém não há glamour algum —apenas senso de dever, cansaço e demandas domésticas e automotivas na passagem de bastão. A cena do beijo muxôxo de “oi e xau” mostrado na reportagem da TV não causa emoção alguma — são apenas duas pessoas que trocam os papéis por pura necessidade, sem sequer se darem ao luxo de pensar numa redentora e merecida pausa diária.
No mundo real, trata-se apenas de cenas de um filme real, onde um casal tenta ganhar a vida de forma honesta se virando do jeito que dá. A maldição neste caso tem causas econômicas e, apesar de voluntária, me pareceu completamente assimilada pelo dia a dia de ambos.
Ao fim da reportagem, lá se vai o lobo noite adentro nas ruas escuras, para no dia seguinte ser a vez da águia fêmea voar pelas vias caóticas da cidade. Romantismo? Amor? Passeio de mãos dadas no parque? Acho que isso vai ficar para um outro filme.
Ao final, nesse história toda acho que comecei mesmo a ter pena foi daquele pobre carro.