Culto a Baco Recentemente saímos juntos com alguns casais para jogarmos conversa fora regada a bons vinhos. Ficou acertado então que cada casal levaria uma garrafa para que pudéssemos apreciar a diversidade dos rótulos. Acontece que dentre meus amigos há um deles que é um grande, talvez enorme conhecedor dessa bebida -apesar de ser...
Recentemente saímos juntos com alguns casais para jogarmos conversa fora regada a bons vinhos. Ficou acertado então que cada casal levaria uma garrafa para que pudéssemos apreciar a diversidade dos rótulos. Acontece que dentre meus amigos há um deles que é um grande, talvez enorme conhecedor dessa bebida -apesar de ser amador, dedica-se com afinco ao vasto mundo dos vinhos, devorando dezenas de livros e participando de vários eventos sobre o tema.
Pois bem, esse meu amigo acaba sendo um pouco o centro das atenções no momento da abertura de cada garrafa -há sempre alguma expectativa dos demais com a sua opinião sobre cada vinho aberto, que ele emite com uma certa soberba em tom professoral, mas que nunca a levamos tão a sério -aliás, não deveríamos mesmo.
A primeira garrafa é aberta e servida a todos e antes do tradicional brinde esperamos curiosos seu pequeno ritual: boca cheia de vinho, bochechas infladas iguais ao seu ego naquele momento, olhos para cima como quem busca um sinal divino de Baco, até que finalmente decreta:
– Apesar de ter um buquê interessante, ser aveludado, possuir notas de tabaco e ser levemente amadeirado, não tem personalidade alguma. Não gostei!
“Nossa!” -Pensamos todos sem externarmos nossos pensamentos- “quanta percepção e sapiência”…Então brindamos e continuamos a agradável conversa apreciando o saboroso vinho (para mim) e os deliciosos acepipes.
A cada garrafa a cena se repete: bochechas infladas, olhinhos revirados para cima , adjetivos cada vez mais complexos e criativos, opiniões cada vez menos relevantes e ao final decreta: “não gostei”.
Àquela altura comecei a refletir, boa parte com o auxílio luxuoso do efeito etílico do vinho em minha cabeça, como é verdadeira uma frase que aplico em diversas situações, que “a ignorância é uma benção”, bem como seu oposto também é. Seu conhecimento tornou-se uma maldição -pobre amigo. Fiquei observando suas caretas e seu desconforto a cada gole, enquanto os demais -eu inclusive- ríamos e nos deleitávamos a cada taça sorvida com total despreocupação com as nuances sensoriais do seu conteúdo. Já meu amigo estava preso à sua erudição enóloga, algo como a pílula azul de Matrix que o fez trilhar um caminho provavelmente sem volta. O grande entendedor de vinho tornou suas papilas gustativas, seu olfato e seu cérebro excessivamente exigentes, transformando-se num escravo da sua elevada e inflexível referência enológica.
A noite foi maravilhosa para todos que não ousaram adentrar-se profundamente no mundo do vinho, mantendo-se naquela zona de conforto entre o reconhecer o bom e tolerar o “menos bom”.
Não dou mesmo ousadia às minhas papilas gustativas de tornarem-me refém de sua elevada exigência, levando para meu cérebro raras percepções sensoriais que adjetivam um vinho como “áspero, equilibrado, complexo, generoso, terroso e agressivo”. Eu simplesmente bebo distraidamente um gole e falo sempre a mesma frase:” Uma delicia!”
A ignorância é mesmo uma benção.