Estava relendo um pequeno bilhete do meu saudoso pai quando me dei conta que não conheço meus filhos -ou melhor, não conheço algo tão comum e prosaico sobre eles e que antigamente era um dos sinais mais pessoais de cada um de nós: suas letras. Isso mesmo, éramos capazes de reconhecer as grafias de nossos...
Estava relendo um pequeno bilhete do meu saudoso pai quando me dei conta que não conheço meus filhos -ou melhor, não conheço algo tão comum e prosaico sobre eles e que antigamente era um dos sinais mais pessoais de cada um de nós: suas letras. Isso mesmo, éramos capazes de reconhecer as grafias de nossos pais, irmão e amigos. Ler algo escrito a punho, trazia na carta, bilhete ou cartão postal, um traço da personalidade do remetente -a leitura, portanto, continha algo pessoal impresso no papel, saído das mãos de quem escreveu. A letra apressada, deitada, caprichada, redonda ou garranchada era algo tão pessoal e reconhecível quanto a voz, por exemplo.
Ao dar-me conta que não sou capaz de reconhecer as letras dos meus filhos, percebi que a escrita em papel está a caminho da extinção, levando consigo não somente parte da identidade dos escreventes, mas também as cartas perfumadas e pingos de lágrimas que borravam a escrita -tudo isso compunha uma comunicação mais humanizada e emocional.
Hoje só usamos a comunicação digital por sua praticidade e rapidez, num processo sem caminho de volta. Surgiram também os famosos Emojis que somaram e ampliaram o arsenal da palavra escrita -na verdade nada mais são que a oficialização das carinhas, flores e corações que adornavam as cartas de antigamente, sobretudo entre os apaixonados. Os tais Emojis de hoje possuem uma lista infindável de figuras para expressarmos amores e dores, alegrias e tristezas, surpresas e frustrações -tem até um sorridente cocô para utilizarmos quando necessário .
Meus filhos me escrevem apenas duas vezes por ano: um no meu aniversário e outra no dia dos pais -desconfio até que por grande insistência da mãe -ainda bem. São pequenos bilhetes e cartões lindos de morrer, os quais guardo como tesouro. Quando começo a lê-los , causa-me um certo estranhamento e felicidade ver o “a” displicente do meu filho e o “m” bonitinho de minha filha. Um engole os acentos e a outra abrevia algumas palavras. Mas, segurar nas mãos algo que lhes roubou preciosos minutos para registrarem pensamentos geralmente não ditos em 365 dias, é uma experiência que adoro e anseio o ano inteiro -para eles, algo tão banal, suponho, mas não para mim, que vejo seus garranchos e caprichos e decifro e reconheço um pouco de suas personalidades.
Então me vem a lembrança de quando ajudei-os as firmar o lápis nos pequeninos dedos a fim de ensiná-los a escrever o próprio nome, ou mostrá-los como com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo. Acontece que logo em seguida entreguei-lhes celulares e tabletes que os fizeram jogar longe seus lápis e canetas, confinados hoje apenas ao ambiente escolar.
Mas, como posso lamentar-me de não reconhecer a letra dos meus filhos, amigos e conhecidos da era digital se mal reconheço a minha própria? Ou, melhor, mal consigo entender meus garranchos cada vez piores ? Hoje escrevo apenas eventuais receitas de remédios, atestados, solicitações, encaminhamentos e laudos profissionais, e o que vejo ali depois são garranchos apressados e incompreensíveis, sinal que estou perdendo a mão e a identidade da escrita. Lembro quando eu caprichava na letra quando estava na escola, ou buscava imitar a de um colega de sala. Reconhecíamos as letras de irmãos, amigos e principalmente de paqueras – sou capaz de reconhecer a letra de minha esposa até no escuro- totalmente diferente das mensagens impessoais de hoje com letras padronizadas lidas através dos celulares -ou seja, nos afastamos um pouco da essência das pessoas mais próximas -acho que nesse ponto a comunicação digital é uma verdadeira ?.