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Golbery Lessa
As críticas da direita alagoana relativas aos movimentos de luta pela terra geral-mente são infundadas, baseiam-se em preconceitos, reacionarismo e egoísmo de classe. Por outro lado, a abordagem da maior parte da esquerda local sobre o mesmo objeto é marcada pelo erro oposto: não percebe qualquer componente que possa ser criticado na trajetória dos movimentos agrários populares, pois estes seriam uma espécie de cálice sacrossanto da mobilização democrática, uma pérola moral do povo que não poderia ser maculada por uma reflexão ponderada e crítica. A injustiça secular do latifúndio justifi-caria um salvo-conduto político e ético para tudo que as lideranças dos trabalhadores sem-terra pensam e fazem. De qualquer ponto de vista ideológico inscrito nas hostes da modernidade (“modernidade” não é sinônimo de capitalismo, é o tipo de civilização que mais se coaduna com as características ontológicas do homem, a saber: trabalho, cons-ciência, liberdade, individualidade e sociabilidade), trata-se de uma postura insustentá-vel.
Pelo fato de que a causa última da miséria contemporânea reside na irracionali-dade das concepções que movem as políticas públicas e que está inscrita nas relações sociais, em nenhuma circunstância a crítica racional pode ser demonizada e tornada um delito, nem mesmo diante da miséria e da destruição da vida de milhares de pessoas no campo. Sem razão não haverá reformas nem revolução. A ausência da necessária crítica está pervertendo muitas das positividades dos movimentos agrários locais e, em conse-qüência, atrapalhando a efetivação da reforma agrária e o avanço das forças populares. Não é apenas o INCRA que tem limites em seus conceitos e atuação, os movimentos de luta pela terra também os têm e precisam enfrentá-los, sob pena de transformarem-se no contrário do que alardeiam.
As principais positividades dos movimentos agrários em Alagoas são as seguin-tes: 1) acreditaram no potencial político dos desempregados rurais, segmento tradicio-nalmente desprezado pelas forças de esquerda, e conseguiram organizá-los de maneira duradoura; 2) facilitaram a construção de laços subjetivos entre os sem-terra (o “sem-terra” é, de fato, o desempregado rural organizado num movimento político) e a recons-trução de suas referências culturais, processos que se expressam, por exemplo, em fatos como o estabelecimento de uma bandeira de luta e a manufatura de uma proposta de explicação particular da história de Alagoas; 3) tornaram os sem-terra cidadãos ativos e altivos, capazes de falar de igual para igual com outros segmentos sociais, tanto os das classes oprimidas quanto os das classes dominantes, e aptos a perceberem a si mesmos como indivíduos dignos de possuir os mesmo direitos dos membros de qualquer outro grupo social; e 4) colocaram o tema da reforma agrária na pauta da sociedade civil e do Estado, ajudando na reflexão sobre os problemas causados pela influência econômica e política do latifúndio agro-industrial.
Por outro lado, os movimentos agrários populares possuem muito limites.
O axioma, proveniente da chamada teoria sobre os movimentos sociais (cada vez mais desacreditada no século XXI) e de outras referências, de que os movimentos de-vem permanecer longe da política institucional, principalmente no sentido de não inte-grarem partidos políticos (para que não se tornem “correias de transmissão”) e não par-ticiparem de governos e parlamentos, faz com que a grande capacidade de mobilização dos movimentos agrários não seja capaz de realizar seus mais generosos objetivos, pois a falta de organização político-partidária de suas bases as torna vítimas preferenciais do clientelismo político tradicional, que move as pás dos moinhos da direita mais reacioná-ria. Assim, mesmo mobilizando setenta mil pessoas nos mais de cento e vinte assenta-mentos e dezenas de acampamentos, os movimentos agrários locais são incapazes de eleger vereadores, prefeitos e deputados comprometidos com a reforma agrária e de contribuir de maneira contundente, via instituições públicas, para a solução de vários dos problemas essenciais de Alagoas.
A recusa de qualquer “institucionalismo” político gera, entre outros, o seguinte fenômeno curioso: os movimentos agrários passam a agir como partidos disfarçados, inconscientes e inconsistentes; encarnam um programa para o Brasil desenvolvido sem a contribuição de Alagoas (em regra, um programa “revolucionário”, como se mudanças estruturais em um país industrial pudessem vir de um universo agrário que só representa 12% do PIB) e passam a lutar por hegemonia no seio da sociedade civil. É significativo sublinhar que uma das causas desse fenômeno reside na ausência de um partido campo-nês bem organizado e ideologicamente coerente, que pudesse se aliar de maneira altiva a partidos operários e representantes de outros segmentos sociais excluídos.
O aludido afastamento das instituições políticas formais e dos padrões cívicos urbanos está inserido num contexto ideológico mais amplo de recusa dos valores da mo-dernidade (tais como, o respeito à individualidade, a valorização da ciência, a escola formal, a separação entre Estado e religião, a liberdade de expressão, a emancipação feminina, entre outros), que são percebidos equivocadamente como idênticos aos valores capitalistas (operação mental que entrega à direita o monopólio do “moderno”). Essa junção entre anticapitalismo e negação do modernismo que ocorre nos movimentos a-grários locais (e nos nacionais) pode ser explicada pelo fato de que sua base social, composta por desempregados rurais inseridos num mundo agroindustrial de capitalismo atrasado, só teve contato com as dimensões mais torpes do capitalismo e sentiram na pele a destruição que algumas instituições modernas (o polícia, o Judiciário, o Legisla-tivo, a escola formal etnocêntrica, a cultura médica preconceituosa etc.) podem fazer quando radicalmente manipuladas pelas classes dominantes. Assim como os camponeses do Agreste e do Sertão, os sem-terra sofrem todos os problemas do capitalismo e não recebem nenhum benefício desse sistema social, bem como só tomam pancada das instituições modernas, já que estas lhes aparecem em sua versão manipulada pelos lati-fundiários e capitalistas urbanos.
Não é por acaso que a Igreja comprometida com os pobres (a Comissão Pastoral da Terra, CPT, foi um dos principais atores na construção dos movimentos agrários po-pulares) e os movimentos socialistas mais românticos (ou seja, que identificam capita-lismo e modernidade e, portanto, rejeitam a ortodoxia marxista, favorável ao “moder-no”) aproximaram-se dos sem-terra e vocalizaram de uma maneira mais complexa a revolta justificável desses oprimidos contra o capitalismo e as instituições modernas. A Teologia da Libertação, que move a CPT e está na base de todos os movimentos agrá-rios alagoanos, comporta um grau significativo de aceitação dos valores da modernida-de, principalmente determinados elementos do método científico e da democracia de massas, mas a centralidade (para usar uma palavra cara a Leonardo Boff) é dos valores cristãos (como a caridade, a prevalência da comunidade sobre o indivíduo, o desapego ao consumo e aos prazeres terrenos, o carisma, a tradição, a transcendência etc.) molda-dos na Antiguidade, na Idade Média e nas regiões rurais da contemporaneidade. Esse arcabouço intelectual, apesar de tudo que tem de progressista e humano, erra por negar ou negligenciar instituições modernas fundamentais (como os partidos, o parlamento, o voto, o Judiciário, os conselhos de políticas públicas etc.) e desejar a superação do capi-talismo sem a sua ajuda.
Inspirados por essa visão de mundo romântico-religiosa, os movimentos agrários colocam-se numa situação muito contraditória na realidade alagoana, pois acabam re-forçando um “ruralismo” que interessa aos latifundiários e a outros capitalistas. Com o surgimento da hegemonia econômica, política e cultural das usinas de açúcar a partir década de 1960 (antes, havia outros setores, com as fábricas têxteis e a burguesia co-mercial exportadora), Alagoas sofreu um processo de “ruralização” de sua indústria (pois esta passa a ser dependente do canavial, da agricultura, o que implica no travamento do capitalismo ), de sua política e de sua cultura. O ruralismo prático e ideológico passa a ser imposto e defendido de maneira quase unânime pelas classes dominantes, o que significa o reforço mastodôntico do patrimonialismo, da ideologia do favor, do despres-tígio das instituições republicanas e da violência política.
Mesmo propondo um ruralismo com a marca das classes oprimidas, que interes-saria imediatamente aos sem-terra e desejaria realizar a justiça, o resultado prático e sub-jetivo do “ruralismo socialista” dos movimentos agrários acaba sendo o reforço do desprestígio das instituições modernas capazes de mediar os conflitos referentes à re-forma agrária e encaminhar a superação do capitalismo de maneira civilizada e inclusiva dos trabalhadores urbanos. Esse caldo de cultura ruralista ajuda a explicar a força na esquerda alagoana da idéia (caucionada pelo marxismo acadêmico, principalmente nos campos da filosofia e do serviço social) de que o Estado de Direito liberal, a emancipa-ção política, a cidadania burguesa, devem ser antes denunciados do que reivindicados e superados dialeticamente (superação dialética que implica no momento de “conserva-ção” e não apenas no momento de “ruptura”); um erro que é mais grave em Alagoas do que em outros estados, já que aqui as liberdades fundamentais e a cidadania liberal são mais embrionárias.
A falta de organização política da vanguarda operária alagoana, principalmente dos operários dos setores básicos da economia (canavieiros, portuários e químicos), que tem sido determinada pela vigilância das oligarquias sobre os sindicatos e pelos defeitos da esquerda local, vem sendo decisiva para a configuração da circunstância esdrúxula na qual os movimentos agrários, trazendo um discurso agrarista e contrário ao moderno, mesmo que justo e bem-intencionado, tornam-se a vanguarda das forças populares numa formação social que precisa justamente de um discurso que defenda a modernidade do ponto de vista dos oprimidos. Modernidade que implica no fortalecimento dos partidos políticos e outras instituições republicanas nas quais é possível testar os limites da cida-dania numa sociedade subdesenvolvida e conectar esse exercício com a aprendizagem dos caminhos contemporâneos de superação do capitalismo. Na medida em que os mo-vimentos agrários estão à frente das mobilizações, cria-se um mundo de cabeça para baixo no qual essas entidades precisam aparentar uma força prática e uma adequação conceitual que não possuem; acabam virando uma vanguarda de faz-de-conta, com ar-riscadas ações espetaculares (fechamento de rodovias, marchas sobre a capital, acam-pamentos em praças e invasões de prédios públicos) que vão perdendo sua força pela inadequação ao ambiente urbano e pela falta de resultados positivos. Do ponto de vista conceitual, o exercício de uma missão para a qual não podem estar preparados devido à própria natureza limitada da “consciência possível” de sua base social acaba num diálogo assimétrico com os setores urbanos no qual os movimentos agrários têm sempre razão sem que seja permitida aos interlocutores qualquer discordância de fundo. A urgência social transforma-se mecanicamente no critério da verdade: “quem sofre mais sabe mais” e vence todos os debates.
O sem-terra não está no centro da produção do valor econômico em Alagoas, ele é essencialmente um desempregado rural; a economia capitalista local não precisa de sua força de trabalho e por isso o descartou da produção ou não o absorveu. O operário do açúcar e os cortadores de cana, por outro lado, criam o excedente econômico essencial, a seiva básica que movimenta o coração da agroindústria e as engrenagens do poder das oligarquias. A mobilização política desses assalariados em defesa de seus interesses imediatos e históricos teria um impacto infinitamente maior na superação do sub-desenvolvimento alagoano do que o causado pelos milhares de sem-terra que lutam a mais de uma década pelo direito de participar da esfera produtiva. Os movimentos agrá-rios alagoanos só trazem duas teses vigorosas para o debate: 1) a reforma agrária é uma necessidade econômica, social e política, principalmente num estado atrasado como Alagoas; e 2) para produzir a maior parte dos produtos agropecuários (em qualquer sis-tema econômico), a agricultura familiar é o tipo de organização produtiva mais racional e eficiente. Entretanto, essas duas constatações decisivas são incapazes de constituir um programa para a Alagoas urbana, que é majoritária. O agrarismo alagoano não será superado por um programa agrário, muito menos pela hegemonia do campo sobre cidade. A palavra cidadania vem da palavra latina civitas (cidade), a palavra política vem da palavra grega polis (cidade); a aliança operário-camponesa, decisiva para a construção de um novo bloco histórico capaz de tornar a formação social alagoana mais generosa, não pode ser o embrutecimento do urbano pela mágoa camponesa com uma modernidade pervertida pelo capital, precisa ser a elevação do homem do campo às luzes da cidadania, da república e do socialismo moderno.