> A peste assolou repetidamente a Europa do século 14 ao 18. A primeira grande epidemia, de 1347 a 1352, matou um quarto da população europeia. Imagine agora que você pertence àquele tempo, quando não se conhecia seres microscópicos causadores de moléstias como vírus e bactérias. O que se acreditava à época era que emanações...
> A peste assolou repetidamente a Europa do século 14 ao 18. A primeira grande epidemia, de 1347 a 1352, matou um quarto da população europeia.
Imagine agora que você pertence àquele tempo, quando não se conhecia seres microscópicos causadores de moléstias como vírus e bactérias. O que se acreditava à época era que emanações invisíveis, quase demoníacas, chamadas genericamente de “miasmas”, eram responsáveis por essas e outras doenças que varriam populações inteiras da Europa Medieval. Acreditava-se também que as pestes eram castigos divinos, enviadas por um Deus vingativo e insatisfeito com os rumos da humanidade. O que você fazia então? Rezava, orava e também promessas e sacrifícios para tentar aplacar e atenuar a ira divina. E o que faziam os líderes religiosos? Aproveitavam-se daquela situação para adquirir cada vez mais poder, já que eram os representantes de Deus na Terra. Uma das soluções propostas era construir igrejas enormes e belíssimas, às custas de sangue, suor e dinheiro da população, com o intuito de agradar a Deus que assistia a tudo lá do alto irascível e indiferente ao sofrimento de sua pobre criação. E assim, queimaram-se bruxas, astrônomos e judeus e ainda construíram reinos e muitas maravilhosas obras de arte.
Quando achávamos que tínhamos controle sobre o planeta que vivemos, inclusive sobre as forças visíveis e invisíveis, eis que nos chega uma peste viral vinda lá da China, literalmente, disposta a nos varrer do mapa e também nossos empregos e nossa paz de espírito. A humanidade foi pega de surpresa numa época em que as preocupações era outras bem maiores e não banais vírus envelopados -os nossos miasmas de hoje. Foi pega de surpresa ao constatar que apesar de tudo, tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais – ou como nossos antepassados.
Acontece que nossa esperança hoje não está mais nas mãos dos líderes religiosos e na construção de belíssimas igrejas, mas sim dos representantes modernos dos desvendadores dos mistérios da natureza: os cientistas. Deles esperamos protocolos de tratamentos, profilaxias e principalmente a tão esperada vacina. Assistimos ansiosos cada descoberta ou avanço no tratamento para o Coronavírus, quase como uma final de Copa do Mundo. O sucesso de medicamentos e tratamentos eficazes são comemorados como um gol, enquanto a nós, pobre mortais, resta apenas nos isolarmos e assistirmos nossa economia desabar como um castelo de cartas e também acompanharmos perplexos a evolução dos números de infectados e mortos -sem falar da tristeza e temor de quando um ou outro alguém próximo é escolhido pelo toque nefasto do miasma moderno.
As religiões seguem ainda firmes e fortes no papel de dar esperança e sentido à humanidade diante dessa calamidade toda. É bem verdade que algumas ainda proclamam tudo isso como sendo castigo divino do mesmíssimo Deus irascível da Idade Média, mas dessa vez sem a queima de bruxas e judeus -felizmente.
Além dos líderes e símbolos religiosos, somos também guiados e consolados pela maior e mais recente invenção da ciência moderna: a internet. É lá que nos consolamos, rimos, choramos, aproximamos os que estão distantes de nós e afastamos os que estão perto. É pela internet também que nos chegam notícias boas e más, bem como belas correntes de orações, além de textos e vídeos que nos enchem de emoção.
Então ficamos assim: de alguma forma voltamos à obscura e supersticiosa Idade Média – é verdade que dessa vez estamos conectados e com um pouco mais de conforto, mas a cabeça e o espírito de cada ser vivente estão tão abalados e assustados quanto à versão medieval. E para muitos, enquanto houver internet funcionando e as bicicletinhas dos entregadores circulando pelas ruas, o mundo ainda não acabou.