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Crônicas e Agudas por Walmar Brêda

Walmar Coelho Breda Junior é formado em odontologia pela Ufal, mas também é um observador atento do cotidiano. Em 2015 lançou o livro "Crônicas e Agudas" onde pôde registrar suas impressões sobre o mundo sob um olhar bem-humorado, sagaz e original. No blog do mesmo nome é possível conferir sua verve de escritor e sua visão interessante sobre o cotidiano.

Todas as postagens são de inteira responsabilidade do blogueiro.

O cuscuz

Eu devia ter uns 12 anos e fui passar um fim de semana na casa de praia de um amigo meu onde havia uma festa na cidade e, por isso,  a casa estava bastante cheia de membros da sua família.
Nos divertimos bastante durante o dia e também à noite e na manhã seguinte fomos tomar o café ansiosos para nos mandarmos para a praia naquele dia ensolarado que começava. Pois bem, sentamos à mesa e começamos a nos servir. Vi então à minha frente um suculento cuscuz de milho novinho em folha, recém-preparado e esperando ser comido. Puxei-o para perto de mim e em seguida cortei meia banda e pus em meu prato, deixando a outra metade para os demais. Quando já estava colocando tranquilamente um pouco de leite e açúcar por cima, como sempre fazia em minha casa, passou ao lado da mesa um tio do meu amigo, que parou ao meu lado espantado ao ver a metade do cuscuz em meu prato. Então abriu um sorriso jocoso e falou com deboche:
– Ave Maria! “Meu fio” nem gosta de cuscuz!!!
A gargalhada foi geral. Ele saiu de perto rindo enquanto meus amigos zoavam do meu imenso prato de cuscuz.
Sabem aqueles momentos em que você de repente se dá conta que esteve errado a vida inteira em algo que lhe parecia tão normal? Num segundo você percebe quão absurda era uma mania, uma ideia, um hábito, um desejo ou um costume seu e então passa a morrer de vergonha da situação e de si próprio por nunca ter enxergado isso? Pois é, fui eu naquele momento no final da infância na casa de amigos, percebendo que não, a medida definitivamente não era metade do cuscuz. A fatia que reduziu a apenas meia banda algo que deveria servir a todos, jazia ainda inerte em meu prato pois, àquela altura do campeonato, apesar da fome,  não tinha mais coragem de sequer tocá-la , pensando até em devolvê-la para a cuscuzeira.
Naquele instante, lembrei-me da culpada de toda aquela situação.  Sim, ela mesma: minha mãe. Por que ela não brigou comigo e me orientou na primeira vez que botei meia banda de cuscuz no prato? Por que ela não ensinou-me a ser menos guloso e egoísta  e pensar que o cuscuz está ali também para todos que estavam à mesa? Por que ela tinha que ser tão boazinha e deixar eu fazer os meus gostos e alimentar minha gulodice ? Por que ela me deixou acreditar que a medida normal era a metade do cuscuz, meu Deus? Por que? Por que?
Ironicamente, ela sempre repetia uma frase quando queria nos orientar quanto às manias e malcriações minhas e dos meus irmãos: “Costume de casa vai à praça” – ou à praia, nesse caso.
Agora estava eu ali, num momento de epifania, sendo zoado por meus amigos com a suculenta metade do cuscuz à minha frente. Mesmo assim, em seguida, comi-o todinho, lógico, afinal o mal já estava feito e a fome era de leão.
Não fosse aquele final de semana, talvez estivesse até hoje colocando metade do cuscuz no meu prato, ocupando duas vagas no estacionamento ou cometendo outras pequenas e grandes gafes por conta da minha gulodice egoísta não podada na infância – sei lá eu. O fato é que mesmo após tantos anos, nunca me esqueci daquele constrangedor e  providencial café da manhã , tanto que já contei para meus filhos em mais de uma ocasião como um exemplo de mal costume doméstico – o que os levaram às gargalhadas.
Na segunda-feira já em casa, sento-me para tomar café e minha mãe, saudosa que estava, põe no meu prato o quê? Isso mesmo, metade do cuscuz.
– Poxa mãe, é muito! Vai faltar cuscuz para os outros… – tento aproveitar a ocasião para queixar-me do meu constrangimento matinal.
– Pode comer meu filho; por isso mesmo fiz logo dois.
Mãe é mãe…

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