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O mundo real e o mundo das leis

AutorDefensor público João Maurício

Defensor público João Maurício

Vivemos numa sociedade onde impera a força determinante das leis. É através deste mecanismo regulatório que as pessoas tomam seus rumos, suas decisões, suas atitudes, enfim, vivem com seus pares e atuam em suas atividades cotidianas.

No topo deste ordenamento legal encontra-se a Constituição Federal, lei maior que, em síntese, orienta as atividades próprias do Estado, concedem aos cidadãos os seus mais preciosos direitos e conferem às demais leis, que com ela não conflitam, a validade necessária para poder gerar seus efeitos.

Pois bem. Analisando a prática ocorrida em nosso cotidiano, verifica-se haver, em muitos casos, uma séria divergência entre o que está descrito nas leis, notadamente na Lei Maior, a Constituição Federal, e o que ocorre no mundo dos fatos com a aplicação concreta das normas pelos juízes e tribunais de todo o país.

Tem-se como foco, na presente análise, a área criminal. Nesta seara, as garantias constitucionais previstas são amplíssimas. Elas podam a atuação punitiva estatal e põe a salvo os direitos básicos dos cidadãos, como, por exemplo, o direito de ser preso apenas após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, permitindo algumas exceções à regra, o direito ao devido processo legal, à ampla defesa, ao contraditório, o direto de ter fundamentada toda decisão que restrinja a liberdade, os direitos e os bens de qualquer pessoa etc.

Muitas dessa garantias, na prática, são esquecidas. Verifica-se, no cotidiano forense, prisões realizadas sem qualquer fundamentação idônea, motivadas apenas pelo clamor público ou pela gravidade abstrata do crime praticado. Não se está aqui negando a importância ou a razão da população em clamar por justiça diante da prática de delitos que tenham causado repercussão na sociedade. Porém, o que não se pode esquecer é que vivemos num Estado Democrático de Direito, onde as condutas dos representantes estatais devem-se pautar pelo que descreve a lei.

Os julgadores não podem absorver as angústias, mesmo que justas, da sociedade. Ele é um agente político preparado para manter-se equidistante das partes em conflito. Imaginem, senhores leitores, um parente ou amigo que tenha se envolvido, por qualquer motivo, em algum crime de grande repercussão. Por esse fato ele não merece ser processado de acordo com os procedimentos legais? Não merece gozar das garantias constitucionais? Pensem, ainda, em contexto diferente, no caso de uma contenda qualquer que envolva você e o seu vizinho. Seria aceitável que quem fosse resolver o litígio estivesse influenciado pela parte contrária? Que o julgador absorvesse as angústias do vizinho e, assim, decidisse o problema? Acredito que ninguém aceitaria tal julgador parcial. Pois então, porque permitir ou aceitar que quem tenha praticado um crime (ofensa maior à sociedade) seja julgado por alguém influenciado pela própria sociedade? Deve-se, ao menos, refletir a respeito do assunto.

A lei garante essa imparcialidade. O pensamento de que as normas ou garantias constitucionais servem apenas para deixar impune o criminoso, é falso. Nossa legislação é severa, muitas vezes desproporcional, e, como bem afirmado em artigo anterior de outro colega Defensor, prevê soluções impensadas para temas de extrema complexidade, tudo pelo fato de ter ocorrido um evento de repercussão nacional.

Porém, por mais estranho que pareça, não raro os próprios julgadores esquecem os limites impostos na Lei Maior e na legislação ordinária e atuam em manifesto confronto com elas.

Para exemplificar tal percepção, apenas nos meandros estreitos da área criminal, veja-se o que ocorre com quem é preso em flagrante delito por um crime qualquer. A lei determina, no artigo 310, parágrafo único do Código de Processo Penal, que o juiz, quando recebe a comunicação do flagrante, o que dever ocorrer em até 24 horas, deve conceder ao preso a liberdade provisória se não estiverem presentes os fundamentos da prisão preventiva. O que parece é que esta norma não está escrita. Muitos juízes, não todos, contentam-se em proferir uma sucinta decisão homologatória do flagrante. Nem ao menos analisam se estão presentes as razões para a decretação da prisão preventiva, até para dizer que estão, ofendendo, frontalmente, o que prevê a lei.

Assim agindo, alguns magistrados terminam por ferir o direto à liberdade previsto na Constituição Federal e esquecem também do princípio da presunção de inocência, pois, em última análise, a prisão sofrida pelo sujeito, por não ter motivo especial algum, passa a caracterizar-se como uma pena, o que só pode ocorrer após o seu final julgamento.

O que se observa, por fim, é que existe um mundo das leis, onde quase tudo é perfeito e onde as regras e princípios harmonizam-se, e, em paralelo, um mundo real, onde as normas, por mais valiosas que sejam, não são observadas, sendo, muitas delas, consideradas como se não fossem sequer escritas. Este não é um problema afeto apenas à área criminal. Existe também um mundo real, diverso do legal, quando o assunto é saúde, educação, assistência social, trabalho, lazer etc. É que nós vivemos no Brasil. Mas, acreditem, o mundo das leis existe.

João Maurício da Rocha de Mendonça
Defensor Público do Estado de Alagoas

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